sábado, 12 de janeiro de 2013



PARE DE TOMAR A PÍLULA



                                                                       Hermance Gomes Pereira


                        O livro do jornalista e historiador Paulo César de Araújo – EU NÃO SOU CACHORRO NÃO, ed. Record, Rio de Janeiro, 2002 – supre com competência séria lacuna na historiografia da música popular brasileira. Até então, ninguém tinha notícia (exceto pesquisadores minuciosos como Adhailton Lacet) que os cantores e compositores da chamada “música cafona” também enfrentaram com galhardia o regime de exceção imposto ao Brasil em 1964.  Este, aliás, o subtítulo da obra: “Música popular cafona e Ditadura Militar”.
                        Já foram gastas toneladas de papel e galões de tinta para imprimir livros, revistas, tratados, teses, análises críticas e artigos sobre a censura e perseguição à Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e outros compositores nacionais insurgidos contra a quartelada. Oriundos da classe média e sobraçando diplomas universitários, certamente escreveram uma das mais belas páginas da nossa música. Pena que eram pouco ouvidos. Especializaram-se na “linguagem de fresta” para driblar a censura. O que conseguia passar pelas frestas deixadas pelos censores, era gravado. Chico Buarque passou até a assinar algumas letras como “Julinho da Adelaide” , ludibriando os censores de plantão.
                        Ninguém falou , entretanto, de Odair José, Fernando Mendes, Luis Ayrão, Benito de Paula, Waldick Soriano, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Wando, Paulo Sérgio e tantos  outros, igualmente censurados e perseguidos.
                        A omissão cheira a preconceito barato. Afinal, Odair José era conhecido como o “Rei das empregadas” ou o “cantor das putas”. Nelson Ned , no  auge do politicamente incorreto, era chamado pela crítica de “anãozinho ridículo”. Todos, sem exceção, originários da classe operária.
                        Paulo César Araújo traça vasto panorama da música ,  digamos, não preferida pela elite intelectual, enquanto instrumento de protesto contra o regime militar. Afinal, se a belíssima “Apesar de você” (apesar de você / amanhã há de ser outro dia) foi censurada, também “Treze anos” (treze anos eu te aturo e não agüento mais / não há Cristo que suporte e eu não suporto mais) de Luis Ayrão também foi proibida. Naquele ano, 1977, a “Revolução” completava treze anos.
                        Odair José vivia às turras com os militares. Quando o governo entendeu de incentivar o planejamento familiar, inclusive distribuindo anticoncepcionais (na verdade seguindo orientação internacional que não via com bons olhos a explosão demográfica na América Latina) , candidamente cantou: “pare de tomar a pílula  / ela não deixa nosso filho nascer”. Imediatamente sucesso nacional, “a pílula” acabou proibida e liberada tantas vezes, que ninguém sabia ao certo se podia tocar ou não. Em vários shows, a equipe de plantão da Polícia Federal  advertia: “hoje não pode cantar a pílula”. Pouco adiantava, a platéia começava a cantar. O artista até tentava: “pelo amor de Deus gente, essa eu não posso cantar”, mas não tinha jeito, acabava cantando. Já saía direito para o Departamento, para mais um  interrogatório sobre suas atividades subversivas.
                        Waldick Soriano, talvez o cantor mais estigmatizado pela elite intelectual em todos os tempos, também  sofreu seu quinhão. Não bastasse o preconceito quanto à qualidade de sua obra, os “gênios” da censura implicaram com  o bolero “Tortura de Amor”  (hoje que a noite está calma/ e que minh’alma esperava por ti / apareceste afinal / torturando este ser que te adora). Justificativa: Na capa da Revista Veja, no começo do Governo Médici, estava a manchete: “O Presidente não admite torturas”.
                        A repressão não se dava só por motivos políticos.  Morais também valiam. Agnaldo Timóteo lutou para conseguir liberação de “Galeria do Amor” (numa noite de insônia saí / procurando emoções diferentes), que fazia alusão à homossexualidade  e à famosa Galeria Alaska, conhecido reduto gay das noites cariocas.
                        Odair José, de novo, consegue desagradar todo mundo. Em pleno debate sobre a implantação do divórcio no Brasil, discussão acirrada e idéia fortemente combatida pela Igreja Católica, singelamente lança “O casamento” (José nasceu em Belém e é carpinteiro/ Maria uma  simples moça caseira/ e hoje vão se casar/ pois não demora eles vão ser pais/ e isso não pode esperar). Para completar, Odair disse em entrevista: “se o Pai escolheu José e Maria, que não eram casados, para que daquela união nascesse o Salvador, é sinal de que o casamento não é tão importante assim”. Foi demais. Católicos enfurecidos insistiam em querer surrar o franzino cantor em qualquer lugar. Um padre de Campina Grande ameaçou excomunga-lo. A música, evidentemente, foi proibida.
                        Mas o divórcio era irreversível em  terras brasileiras. Cláudia Barroso lança o bolero “Duas Almas”: “o homem que eu amo é proibido / o homem que eu amo é casado  e  foi insistente com outro bolero, “Mulher sem  nome”: “me chamam de mulher sem  nome/ porque gosto de um  homem que tem outra mulher). Odair arrematou o debate com “Agora sou livre” (agora sou livre / pro que der e vier).
                        O livro  traz ainda um registro relevante. Esses artistas, ditos “cafonas” com  suas vendagens expressivas permitiam a gravação de artistas de pouco retorno comercial, mantidos nas gravadoras apenas porque davam status e prestígio. Lindomar Castilho , Evaldo Braga e Paulo Sérgio (para não falar no indefectível Odair José) simplesmente vendiam muitas vezes mais que o “primeiro time” da MPB: Chico, Caetano, Tom  e Gil. Mais ainda, os campeões de venda possibilitavam a liberdade de criação dos monstros sagrados.
             Diz o autor, textualmente: “João Gilberto, por exemplo, talvez só tenha conseguido liberdade de criação para gravar seu primeiro disco de bossa nova na Odeon, em 1958, porque lá existia um outro cantor baiano chamado Anísio Silva, que com seus boleros sentimentais chegou a vender na época a fabulosa marca de 2 milhões de discos. Não fosse isso, e provavelmente a Odeon  não tivesse arriscado estúdio e capital com um disco de um cantor excêntrico, desconhecido e de pouco apelo comercial.”
                        É bom lembrar disso na próxima vez que ouvir “Chega de Saudades”.

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