sexta-feira, 7 de junho de 2013

Levarei sua alma



LEVAREI SUA ALMA
                                                                      Hermance Gomes Pereira
                        O cinema de José Mojica Martins anda meio esquecido em terras brasileiras. Só em terras brasileiras. Mundo à fora, desde que abiscoitou prêmios em festivais na França, EUA, Espanha e Itália nas décadas de 60 e 70, Zé do Caixão (Coffin Joe para os estrangeiros) nunca saiu de moda.
                        É tratado como gênio do cinema  trash , e ainda lota salas de exibição do dito “Circuito B”. Parte de sua obra cinematográfica foi digitalizada e é vendida em caixas contendo vários DVDs.
                        No Brasil seu público é restrito. Rótulos são difíceis de descolar e ninguém foi mais rotulado no meio artístico do que Mojica. Conseguiu a proeza de desagradar a esquerda e a direita nos anos de chumbo. A intelectualidade de esquerda achava-o descomprometido com a luta social – no que estava coberta de razão: Mojica sempre disse que fazia filmes “porque gostava”,  o que era considerado anátema para os que entendiam cinema como meio de fazer revolução. A direita simplesmente não entendia nada e um técnico de censura (sim, eles existiram) ao emitir parecer sobre “O Despertar da Besta” chegou a recomendar a prisão do diretor.
                        A trajetória do mais polêmico diretor de cinema do Brasil é traçada por André Barcinski e Ivan Finotti em  “MALDITO – a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão” Editora 34, São Paulo.
                        Jorge Amado  reclamava que a nossa literatura é pobre em biografias. Este trabalho vem enriquecer um pouco o cenário, com a grande vantagem de ter sido lançado quando o biografado está vivo e tentando fazer o que sabe: cinema.
                        A narrativa chega a ser comovente quando se descobre a força despendida por Mojica para produzir cinema: vendia, literalmente, até as roupas para comprar algumas latas de negativo. Passava meses alimentando-se de torresmo e ovo de codorna por absoluta falta de dinheiro. Não sofreu sozinho. Com ele, mulher (ou mulheres no seu caso) e filhos também passavam necessidade, pois os móveis da casa e por fim, a própria casa , também entravam na dança: vendidos para terminar um  filme.
                        Seus estúdios e escolas de interpretação funcionaram nos mais inusitados locais: galinheiros, sinagogas, fundos de quintal, etc.  O importante era filmar. E ele o fez intensamente. Dirigindo, atuando, ou fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, Mojica está em mais de cem filmes. Isso para não falar em livros, rádio,  teatro, televisão, gibis e discos (dois, absolutamente infames).
                        Apesar de ter feito várias fortunas para os outros – principalmente produtores e distribuidores – Mojica continuou pobre de Jó, em parte por sua total incompetência para gerir e administrar, em parte pelo imenso coração que considerava natural sustentar dezenas de pessoas – muitos aproveitadores, tão logo tinha um  tostão no bolso.
                        O lado bem humorado da narrativa fica por conta dos desencontros amorosos de Mojica: houve época em que esteve casado com quatro mulheres ao mesmo tempo, todas morando no mesmo bairro e sem sequer desconfiarem da existência das outras.  Chegou ao requinte de pedir ao seu pai, Antônio Marins, que registrasse os filhos de uma delas como seus. Ou seja, legalmente, Mojica tornou-se irmão dos próprios filhos. Absolutamente hilariantes e funcionais são as manobras de marketing desenvolvidas por Zé do Caixão. Basta lembrar a campanha “O Diabo é Nosso” lançada concomitantemente com o filme Exorcismo Negro (1974) que concorria diretamente com “O Exorcista” (The Exorcist, de  William Friedkin). Mojica entendia que não precisávamos de  diabo norte-americano: “o diabo brasileiro é melhor”.
                        Sem jamais receber um único centavo de órgãos públicos (nada da Embrafilme , de onde outros amealharam rios de dinheiro para produzir mediocridade ) fez cinema sem parar por décadas, por pura paixão, com energia inesgotável, mesmo com a saúde combalida por doenças cardíacas e alcoolismo.
                        Gostar ou não do trabalho de Mojica envolve fatores diversos. Glauber Rocha costumava gritar dentro dos cinemas, enquanto assistia aos filmes: “GÊNIO, ESSE CARA É UM GÊNIO”. O que não se pode negar é o caráter inovador e experimental de suas películas.
                        Inaugurou no Brasil o gênero do terror com “À Meia Noite Levarei sua Alma” (1964). Filmou de planos jamais vistos,  criou linguagem nova, ousou. Depois, premido pela necessidade, inaugurou o cinema de sexo explícito (quem, hoje na faixa dos 40 anos, não lembra de “24 Horas de Sexo Ardente” e sua continuação “48 Horas de Sexo Alucinante”?) em fins da década de 70.
                        “À Meia Noite Levarei sua Alma” é o primeiro grande sucesso de Mojica, foi precedido pelos insignificantes “Sentença de Deus” (1954), “A Sina do Aventureiro” (1957/1958) e “Meu Destino em Tuas Mãos” (1961/1962), e mereceu da crítica de cinema Tati Morais (Jornal Última Hora) o seguinte comentário: “Confessamos alguns pulos na cadeira enquanto assistimos a esse delicioso horror nacional. À Meia Noite Levarei sua Alma, o primeiro do gênero a ser feito aqui no Brasil e que é para ser visto metade à sério, metade rindo (o público reage na hora exata), fórmula ideal para o humor negro...Seu expressionismo é ajudado por uma cenografia imaginativa na escolha, ora horrenda, ora humorística dos elementos habituais do horror e mais alguns outros inventados por conta própria. Os ingleses, até agora donos supremos do gênero, teriam coisas a aprender com Mojica”.
                        Mojica não dirige um filme inteiramente seu desde os anos 80, para desgosto de seus fãs americanos e europeus. O livro tenta não deixa-lo cair no esquecimento em seu próprio país.